

estação #01
LEMBRE-SE DE MIM
A primeira estação de A MORTE DA ESTRELA, dirigida por Natália Mallo, discute o lugar da figura estelar como símbolo, modelo e aspiração do sistema criativo vigente no espetáculo teatral euro-ocidental.
A reflexão sobre a estrela proposta nesta estação observa as estruturas de poder e forças econômicas que alicerçam essa "sentença inalcançável" que rege os modos de fazer teatrais ainda praticados na atualidade, e que insistem na hierarquização entre sujeitos e entre corporeidades. O corpo objetificado da artista mulher, por nós tematizado, é garantia da sobrevivência extemporânea do star system (o sistema estelar) no imaginário coletivo, reavivado dos traços passados da diva, da primeira atriz e da musa em personas sociais contemporâneas, como a digital influencer.
No texto inédito, escrito por Vana Medeiros, três atrizes brasileiras do teatro independente "de pesquisa", sideradas por uma aparição fantasmagórica, são lançadas à missão de salvar uma estrela do passado de sua morte por esquecimento. Ao decidir explorar diferentes formas de encarnar e desentranhar a figura-espectro da estrela e seu mandato, ainda que sem convicção plena da propriedade do pedido de vingança, as três atrizes debatem sobre as mudanças na cena e na sociedade, em diálogos afiados e canções icônicas, sempre marcados pela ironia.
O material criativo dessa primeira estação joga com os elementos da cena representada, para questionar sua eficiência e propriedade, diante dos tempos e dilemas atuais. Usando elementos do teatro musical, da cultura pop, do comportamento drag e do cinema mainstream, as cenas alternam-se entre a presença cotidiana e a montação, enquanto as atrizes buscam solucionar a missão que, mesmo que relutem em acreditar, parece dizer respeito a elas.
A estação LEMBRE-SE DE MIM é finalizada no limite da dissolução do projeto da estrela, quando as três atrizes reconhecem sua falência e transitoriedade. Abre-se, então, outra aspiração para a continuidade delas na história.

estação #02
Nesta fase de A MORTE DA ESTRELA, concebida e dirigida por Lu Favoretto, bailarina, coreógrafa e diretora da Cia 8 Nova Dança, as atrizes aproximam-se de uma linguagem hibridizada, fruto da contaminação entre a dança, o teatro e a arte da performance. A estação #2 encontra inspiração na desconstrução de padrões que nos habitam em nosso corpo-mente, e que atribuímos aqui às imposições da cultura, relacionadas ao modo como as mulheres são localizadas na sociedade, em nosso tempo histórico.
Através do corpo em movimento, são acionados novos devires, em tentativas individuais e coletivas de mutação, que se refletem no estado cênico. O apoio na estrutura motora emerge em novas frequências corporais, numa abertura para vocabulários de movimento e intensidades na experiência inusitados, que operam como pistas para uma construção temporária de um devir-outro, constituído de múltiplas desconstruções.
A matéria criativa, derivada de disparadores de incessantes devires, vai sendo gerada na imaginação e no corpo de cada performer-criadora, com suas potências, marcas, cicatrizes e desejos. Quais os impulsos de transformação e de fluidez que podem eclodir de cada uma das três performers, para além do hábito, atrelado a uma sociedade dominada pelo consumo e mercantilização, que nos constrange em projetos de individuação homogeneizantes? Quais as interações e entrelaçamentos que derivam daí, sugerindo amigares entre humanos, minerais, vegetais, animais e encantados? Essas são questões de investigação da cena, em busca da ampliação dos imaginários, diante dessas pulsões de morte do indivíduo, dando lugar a outras presenças.
Uma das matrizes de movimento que se desdobra na cena e que convida à experimentação corporal em torno da pergunta "devir o que?" é o desfazer da face. Lugar de identidade estabelecido com fixidez, a face é deslocada, gerando possibilidades motoras e de presença que buscam o desfigurar da figura.
As linhas de deformação, uma vez convocadas, se compõem instante após instante, acompanhadas por projeções de imagens e desenhos de luz que promovem o atravessamento do espaço e do tempo. A sobreposição de projeções (que, dentre outras coisas, evocam a memória do próprio processo criativo) à vivência do corpo no instante-presente da cena é responsável pelo deslocamento das perspectivas das performers e do público, abrindo fendas na percepção.
A experiência do porvir, então, estende-se dos corpos para a espacialidade e para a temporalidade, conduzindo os espectadores a uma fruição de caráter singular, em território desconhecido. A resultante da estação #2 - DEVIR O QUE? escapa do controle absoluto da situação cênica, deixando emergir vulnerabilidades e sensibilidades, na cena e na plateia.
DEVIR
O QUE ?
estação #03
Na estação #03, parte final de EMBORAR, com orientação de Cibele Forjaz, nos encontramos com o POEMA JIBÓIA, escrito por Cláudia Schapira, com inspiração no mito narrado pela mulher indígena e xamã Mapulu Kamayurá. Após o debate sobre os modelos de cena e o adensamento da experiência de um corpo em devir, vivenciados nas estações #01 e #02, a narrativa tradicional das Yamuricumã, trazida por Mapulu Kamayurá, constitui uma espécie de choque de concepções de mundo, que demanda um tipo singular de escuta e mobilização.
Aproximadas às Amazônidas, ou Amazonas, as Yamuricumã são mulheres que partem em marcha, abandonando suas famílias e terras, para construir um outro mundo, em outro lugar. A narrativa tradicional exposta no mito é devorada pelas artistas do coletivo, que devolvem de forma cênica a experiência suscitada pelas palavras de Mapulu. A marcha da mulherada, em busca de um outro território em que possam vivenciar outras formas de convivência, é a imagem e o mote que conduzem o público e as atrizes numa espécie de jornada através dos espaços do edifício em que se dá a apresentação.
Na estação #3 de A MORTE DA ESTRELA o caráter performativo, constituído nessa trajetória imersiva pelas entranhas do edifício teatral, vai se entremeando aos recursos da narrativa épica, da cena lírico-musical e do conflito dramático, mas sem assentar-se em nenhuma dessas soluções enunciativas. A mulherada segue procurando, estabelecendo na sua relação com os espaços reais da trajetória (o palco, os corredores, a cozinha, o estúdio de costura, o jardim e as escadarias do Museu do Ipiranga, entre outros) os sentidos poéticos e políticos dessa marcha infinda. Esses sentidos, como tem ocorrido na dramaturgia de Cláudia Schapira, evocam também as lutas das mulheres no passado histórico brasileiro e no momento atual.